A enchente que entrou sem pedir licença e transformou São Luiz do Paraitinga
O município histórico de São Luiz do Paraitinga (SP) é conhecido por ser um reduto de diversas manifestações culturais e o lar de comunidades de caipiras e de pessoas que querem fugir das cidades grandes. As paisagens rurais e o ecoturismo são parte integrante da configuração local, que abriga parte do Parque Estadual da Serra do Mar, uma unidade de conservação de mais de 300 mil hectares. Mas em 2010 uma inundação devastadora assolou a comunidade de 10 mil habitantes, alterando permanentemente o cenário bucólico.
Foi diante disso que a bióloga Juliana Farinaci acompanhou o processo chamado de “resiliência socioecológica” da cidade, com a intenção de ilustrar a trajetória de superação das adversidades na vida daquelas pessoas. Marcados pela conexão com o que entendemos por natureza, os moradores de São Luiz do Paraitinga encontraram novas formas de se desenvolverem, adaptando-se às mudanças provocadas pela força da natureza, ao mesmo tempo que mantiveram vivas as suas identidades culturais.
Para a análise, a bióloga colocou as manifestações da cultura popular daquela cidade no centro da pesquisa. Segundo ela, as festanças e outras expressões tradicionais que marcam a identidade de São Luiz do Paraitinga, foram imprescindíveis para lidar com o momento que se sucedeu após a crise. “São exercícios de auto-organização e de ação coletiva. É interessante ver como que com tão pouco se faz tanto, e ninguém ali tem muito dinheiro ou um grande financiador”, explica.
Os resultados da pesquisa de Juliana foram incorporados ao projeto “SinteSIS: Gestão de Recursos Naturais em Sistemas Socioecológicos: Integrando Conservação Ambiental e Desenvolvimento Local”, coordenado pela professora Cristiana Simão Seixas e financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Oficialmente, o projeto encerrou neste ano suas atividades.
Sintetizando
Tomando como base mais de nove anos de trabalho de pesquisa e extensão, o SinteSIS está ligado ao Nepam (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Surgiu em 2016 com a proposta de pensar diferentes maneiras de conservação da biodiversidade e manejo de recursos naturais que aliam desenvolvimento socioeconômico local e participação comunitária na governança do meio ambiente.
Junto com a professora Cristiana, Juliana coordena o grupo interdisciplinar de pesquisa, ensino e extensão do Nepam, o CGCommons, que atua desde 2009 na área de gestão de recursos naturais de uso comum, auxiliando ações das comunidades que dependem de tais serviços. O SinteSIS é um dos projetos que faz parte do grupo. A resiliência é uma marca imprescindível dos estudos desenvolvidos para descrever e ilustrar essa trajetória de pesquisa.
Resili… o quê?
Você provavelmente já deve ter visto essa palavra tatuada na pele de alguém, estampada em uma camiseta na vitrine de uma loja de departamento, ou mesmo ouvido da boca da sua prima adolescente. Aposto que, de primeira, você achou que fosse um xingamento. Tudo bem, eu também não sabia exatamente o que significava. Foi aí que eu pedi ajuda aos buscadores e encontrei algumas respostas.
Enquanto que na física refere-se à propriedade de certos corpos em retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação residual sem que ocorra ruptura, na ecologia, resiliência é a capacidade de um ecossistema de responder a uma perturbação ou distúrbios, resistindo a danos e recuperando-se, mas mantendo essencialmente sua estrutura e funções.
Foi tomando como premissa parte desse último conceito, mas voltando o olhar para o social e para a capacidade de auto-organização, aprendizado e de adaptação, que Juliana decidiu usar a resiliência socioecológica como base para o estudo de caso de São Luiz do Paraitinga. Afinal, em tempos de Antropoceno – a humanidade tem impacto no clima da Terra e no funcionamento dos ecossistemas – não dá para separar natureza de sociedade.
Entrou sem bater à porta
A cidade histórica de São Luiz do Paraitinga (SP) está localizada no Alto Vale do Paraíba, a 170 km da capital São Paulo. Inserido dentro de uma parte do Parque Estadual da Serra do Mar, o município é cortado pelo Rio Paraitinga, que forma uma importante bacia de água doce. Os “mares de morros” que rodeiam a paisagem dão um toque especial ao aspecto campestre da região.
Celebrações típicas da cultura popular como a cavalhada, as marchinhas de carnaval, a congada e a Festa do Divino atraem a atenção de turistas do Brasil todo. O turismo ecológico também é uma das atividades importantes que movimentam o local. Além do mais, o Centro Histórico da cidade é tombado como patrimônio arquitetônico brasileiro.
No entanto, em 2010, parte da exuberância natural e da riqueza histórica e patrimonial se viu em ruínas. Uma forte inundação do Rio Paraitinga devastou diversas construções históricas, incluindo a Igreja Matriz, construída no século XVII. Além do dano ao patrimônio material, uma pessoa acabou morrendo. Lares foram destruídos e mais de 3 mil pessoas foram desabrigadas ou desalojadas. À época, a notícia percorreu os meios de comunicação do país.
Alguns meses após o desastre a bióloga Juliana Farinaci começou a sua pesquisa de doutorado na região. No início, ela explica que estava interessada nos processos de recuperação de floresta nativa, mas acabou imersa na cidade, acompanhando a reestruturação do local como um todo. Anos depois ela iria transformar o caso da enchente em seu projeto de pós-doutorado.
A pesquisadora ficou interessada em entender os fatores que tinham ajudado na capacidade de reorganização dos moradores após a crise. “Eu comecei a conversar com as pessoas e todos estavam ainda muito mexidos com aquilo. Eu pude ter uma noção da dimensão de como tinha sido o desastre e de como a população tinha conseguido se articular e se organizar no resgate das pessoas”.
Renovando ciclos
Os sistemas socioecológicos – lembrando que natureza e sociedade são conceitos inseparáveis – passam por ciclos de crise e renovação, chamados de “ciclos de renovação adaptativa”, como explica Juliana. “Nesses ciclos você tem um crescimento, depois um acúmulo de energia, de matéria, ou de capital, e em certo momento, esse sistema inevitavelmente vai passar por uma crise que pode até causar um colapso, mas o sistema vai inevitavelmente passar por uma fase de reorganização, considerada uma fase rápida”.
Foi exatamente o que ocorreu com o município histórico. De acordo com a bióloga, apesar de esses eventos trágicos serem comuns tanto no Brasil quanto no mundo, o caso de São Luiz do Paraitinga pode ser considerado um exemplo singular de resiliência. “Dificilmente a gente vê situações em que aquele sistema social consegue de uma forma extremamente eficaz agir a um momento de crise e em que as pessoas conseguem se organizar de forma tão rápida pra restabelecer as condições básicas de funcionamento da cidade”.
Ela queria saber o que poderia aprender com aquele caso particular para, desta forma, pensar em possíveis ações que as pessoas pudessem aplicar em outras situações. “Ao entender como se dá uma reorganização e uma reação bem sucedida frente a uma crise, isso pode nos ensinar como se desenhar ações, programas, incentivos que possam fomentar essa forma de se organizar pra ser resiliente”.
O que impressionou a bióloga logo de cara foi o modo com que as pessoas conseguiram se recompor de forma tão rápida e eficaz para restabelecer as condições básicas de funcionamento da cidade. “A cidade estava funcional, tudo limpinho. Os laços de solidariedade foram fortalecidos e o sentimento de irmandade era forte. A atmosfera que percebia naquelas pessoas, embora tivesse ainda muitas obras acontecendo, era de ‘bola pra frente’ e de reconstruir juntos”, explica.
Capacidade de resposta “tabajara”
Juliana afirma que, daqui pra frente, desastres ambientais como a inundação de 2010 serão cada vez mais frequentes no mundo. Reconhece a relevância de estratégias geotécnicas que monitorem e lancem alertas para a defesa civil e a criação do CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) é um exemplo. Mas ela chama atenção para um tipo de resposta a que normalmente se dá pouca importância.
“É necessário ter uma defesa civil bem estruturada e dinheiro pra investir em planos de contingência, em contenção de área de risco, mas também precisamos entender quais são os processos endógenos de respostas que podem emergir frente a uma situação de crise e emergência. Ou seja, ver como se dá a capacidade de resposta ‘tabajara’, que é essa que acontece no susto, sem recurso nenhum, no improviso”.
A cultura que vive
As manifestações da cultura popular e as festas tradicionais ofereceram uma atmosfera de solidariedade e ação coletiva, imprescindíveis para a resiliência socioecológica durante o momento da crise. Esse foi o ponto central colocado pela pesquisa de Juliana, que faz questão de enfatizar que essas expressões são tão importantes quanto, por exemplo, se pensar em planos de contingência. “As pessoas fazem com prazer, com conhecimento muito grande de como se organiza uma festa, de tudo o que precisa. Se tem uma coisa que brasileiro sabe fazer é festa e por que a gente tem que achar que isso é algo ruim?”.
A mais importante é a Festa do Divino, como explica Juliana. “Pra acontecer a festa, uma pessoa fica responsável pela organização a cada ano. O festeiro vai percorrer o território, indo nas casas para pedir doações. E isso é feito ao longo do ano, coletando as doações que serão consumidas na festa”.
Tudo é feito com uma junção de poucos recursos materiais, como aponta a bióloga: “Ninguém doa nenhuma fortuna. Alguns doam um porco, uma vaca, outros doam o dinheiro que podem, ou ‘prendas’ para serem rifadas. O festeiro não é o único responsável. Cada um ajuda com o que pode, com bens materiais ou com trabalho e no final a festa acontece com muita fartura”.
Ela lembra que essa é uma tradição de festas populares que ocorre em diversos lugares no Brasil e serve como um exercício vivo de ação coletiva. “É essencial para a auto-organização em momentos de crise. Infelizmente essas práticas culturais estão morrendo em muitos lugares e o interessante de São Luiz é notar justamente que, apesar das dificuldades, algumas tradições vêm sendo mantidas vivas”.
Tradições como essa levaram ensinamentos fundamentais no momento da crise. A bióloga afirma que os habitantes tinham um mapa mental da cidade, o que facilitou identificar as moradias e os locais mais necessitados após o desastre. “Eles sabiam onde tinha idoso, crianças, pessoas com necessidade especial. E pra organizar um resgate de uma forma comunitária já tem que ter os líderes e as pessoas saberem o que fazer”.
Ciclos de aprendizagem
Foi também graças ao turismo ecológico, fruto do patrimônio natural que inclui o Parque Estadual da Serra do Mar, que os resgates puderam ser feitos de forma mais rápida e eficaz. “Os profissionais de rafting das operadoras de turismo lideraram os resgates, pela experiência de navegação. Os bombeiros não conseguiram usar com tanta eficácia o conhecimento técnico que tinham por não conhecerem as condições locais. Aqueles profissionais do turismo tinham tanto a compreensão local quanto técnica”, lembra.
Além disso, em tempos de crise, o que percebe-se é que os primeiros afetados são as populações mais pobres. Não foi o que aconteceu em São Luiz do Paraitinga, como observa a pesquisadora. “A enchente atingiu até mais as pessoas mais ricas, porque lá alguns dos bairros mais modestos são acima do morro. Naquela hora que ninguém tinha nada, que estavam na mesma fila pra receber comida, aconteceu de empregado e patrão repartirem da mesma fruta, de alguém oferecer ajuda a uma pessoa muito mais rica, de patrão ir dormir na casa do empregado”.
As adversidades da vida também podem ser vistas como uma chance de transformação e de mudança, ou “janelas de oportunidades”, segundo o referencial conceitual da resiliência socioecológica. São Luiz do Paraitinga é, portanto, um grande exemplo quando se trata disso. “Cada vez que a gente encontra uma dificuldade, dá um tropeço, também pode ser uma oportunidade pra inventar um novo passo, de dançar num ritmo diferente, e acredito que isso pode ser levado pra qualquer contexto”, conclui.
Como disse uma moradora da cidade durante entrevista para o documentário Memória Luizense: “O rio sobe, o rio leva. As coisas são finitas, a gente não pode se prender. Mesmo tendo uma responsabilidade com a nossa história, a gente tem que saber a hora certa de abrir mão de certas coisas. O que o rio fez foi exatamente isso, ele entrou sem pedir licença, saiu sem falar muito obrigado e ficamos nós, com as nossas perdas e as nossas vidas pra tocar adiante. E depois de tanto tempo estamos aí, nos refazendo, sendo felizes, tendo ‘diabão, diabim’ [no dialeto caipira]”. Isso é resiliência.
Saiba mais
Juliana Farinaci é uma das coordenadoras do grupo interdisciplinar de pesquisa, ensino e extensão do Nepam/Unicamp, o CGCommons, que atua na área de gestão de recursos naturais de uso comum, auxiliando ações das comunidades que dependem de tais serviços. Foi membro do projeto de pesquisa “SinteSIS: Gestão de Recursos Naturais em Sistemas Socioecológicos: Integrando Conservação Ambiental e Desenvolvimento Local”, coordenado pela professora Cristiana Simão Seixas e financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que encerrou as atividades em 2018.Para saber mais sobre o grupo, acesse: http://cg-commons.wixsite.com/commons
Juliana também participou do projeto de pesquisa “SinteSIS: Gestão de Recursos Naturais em Sistemas Socioecológicos: Integrando Conservação Ambiental e Desenvolvimento Local”, coordenado pela professora Cristiana Simão Seixas e financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que encerrou as atividades em 2018.
O documentário “Memória Luizense” é uma produção da AMI São Luiz, uma associação que trabalha na preservação da memória da cidade. A coordenação geral foi de Luiz Egypto de Cerqueira e produção musical de Galvão Frade. Assista ao documentário na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=VkxkBZugevQ
Alessandra Marimon é jornalista e aluna do programa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor/Unicamp)