Tristeza do Jeca: serviços ecossistêmicos em perigo
Por Alessandra Marimon
O município histórico de São Luiz do Paraitinga (SP) abriga o distrito rural de Catuçaba, uma comunidade de aproximadamente 1000 habitantes rodeada por morros e formada essencialmente por caipiras. Apesar das belezas naturais e do povo hospitaleiro, a simpática vila localizada na Bacia do Rio do Chapéu tem percebido diversas alterações e sofrido com impactos ambientais. A população notou, ao longo de pelo menos 30 anos, que a água, a produção de alimentos e o solo, estão em processo de degradação.
Interessada em compreender como as pessoas vêem os serviços que a natureza provê, e quais os fatores sociais e ecológicos que os afetam, a bióloga e aluna de doutorado do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Alice Ramos de Moraes, escolheu estudar as relações daquelas pessoas com a natureza. O objetivo da pesquisa dela é auxiliar uma melhor gestão de recursos naturais, além de chamar atenção para a importância que a natureza tem para as pessoas e para a conservação da biodiversidade.
“O que me motiva é procurar conciliar a conservação com o desenvolvimento, especialmente em áreas rurais, pois ambos são geralmente encarados como antagônicos. Ou seja, existe uma ideia de que você não pode ter desenvolvimento a não ser que derrube ou retire a vegetação nativa, e se você conservá-la, é impossível plantar, trabalhar a terra, etc.”, explica Alice.
Mas que bicho é esse? A bióloga trabalha com esse conceito de serviços ecossistêmicos, que são os benefícios que a natureza fornece às pessoas e que afetam o seu bem-estar. “Você tem a água, a regulação climática, o controle de erosão, o uso do solo, as matérias-primas… mas também tem uma parte subjetiva, que são os serviços ecossistêmicos culturais, como a inspiração para arte e cultura, a beleza das dos animais e matas, o equilíbrio emocional e os valores espirituais em relação à natureza”, exemplifica ela.
Um dos moradores da região, um homem de 43 anos, traduziu para Alice, em uma de suas falas, o que ele entende por ser a parte subjetiva dos serviços ecossistêmicos culturais: “Eu olho pro ribeirão do Chapéu, ao mesmo tempo que ele tem aquela ferocidade nas corredeiras, os remansos (…) e é coisa que traz tranquilidade… e a tranquilidade da natureza reflete na espiritualidade, ela diminui o batimento cardíaco, ninguém tá te ligando, ninguém tá falando alto, não tem carro passando… E é o que tá fazendo falta, exatamente essa relação de admiração espiritual íntima, de olhar pro ribeirão do Chapéu e olhar para aqueles morros lindos, e lembrar que a natureza não é sua, você que é dela.”
Um dos passos da pesquisa da bióloga foi entender quais são os fatores que afetam a qualidade desses serviços e de que maneira impactam na vida das pessoas, com reflexos até mesmo em outras regiões do Brasil. “As áreas rurais são interessantes pra se estudar sob esse enfoque, porque as pessoas estão ali em contato direto com bicho, com a água e com a mata, elas estão se desenvolvendo e dependendo diretamente de tudo aquilo pra viver”, ilustra a pesquisadora.
Benefícios naturais em perigo A aluna descobriu que a comunidade tem percebido a degradação na qualidade e quantidade da água, da produção de alimentação e do solo – serviços que estão todos interligados. A bióloga concluiu que uma causa comum a esses problemas é a perda de solo. “Isso leva ao assoreamento de nascentes e rios, prejudicando a qualidade e a quantidade de água e diminuindo a fertilidade do solo, o que impacta na produção de alimentos”.
Um morador de 57 anos notou que a produção local de alimento tem diminuído. “No passado já foi muito mais. Se você pegar toda essa região, desde o rio do Chapéu, isso é o que mantinha todo o vale do Paraíba, até São Paulo. Se produzia muito alho, muita cebola. Hoje não mais, hoje é pouco”. O homem, que antes vendia feijão e hoje precisa comprar o alimento, acrescentou que isso vem ocorrendo há pelo menos 40 anos. “Saía caminhões de mantimento daqui, e você vê hoje que a maioria é pasto”.
O histórico de uso da terra da região levou à retirada de grande parte da cobertura vegetal nativa que poderia exercer a função de segurar parte da água e evitar problemas. Alice exemplifica: “Quando acontece uma chuva forte ou tem obras de restauração das vias, as estradas rurais que normalmente margeiam os rios e riachos arrastam toda aquela terra pro rio”. Além disso, segundo ela, muitos plantios são feitos no estilo “morro abaixo”, o que contribui para o problema de assoreamento. “Ainda mais quando chove, eles viram grandes corredores e a água passa levando tudo”.
A perda de solo é favorecida por aspectos de ocupação do território e práticas usuais de manejo, principalmente relativas à criação de gado. A pecuária extensiva, atividade bastante difundida na região e de baixíssima produtividade, gera problemas ambientais que poderiam ser sanados com mudanças no manejo. “O gado está lá pastando livremente, pisoteia e compacta o solo, o que forma uma cobertura muito rala, num pasto muito baixo e degradado. Aí, quando chove, a água desce com muita velocidade e precisa evitar essa perda de solo”, esclarece Alice.
Uma moradora de 40 anos conseguiu perceber claramente o problema da erosão e o que poderia ser feito para solucioná-lo. “Tem a ver com a forma que as pessoas ocupam o lugar. Então se aquele topo de morro fosse vegetado, com cobertura de floresta mesmo, pra que essa água viesse com menos velocidade, infiltrasse, e eu deixasse pra fazer o manejo rotacionado do meu gado mais baixo e próximo das casas, o impacto seria menor.”
Jeito de mato Em contrapartida, as florestas da região apresentaram melhora na qualidade por haver uma tendência de aumento da cobertura florestal na bacia, como foi constatado em outros estudos anteriores ao da bióloga. Alice levou isso em conta, mas lembrou que esse aumento se dá pela degradação dos outros serviços. “A escassez de mão-de-obra devido ao êxodo rural, por exemplo, prejudica a produção de alimentos, mas ao mesmo tempo o abandono de áreas permite a restauração espontânea da floresta”, conclui.
Outro morador de 78 anos resumiu para Alice a tendência de escassez de mão-de-obra dos últimos anos: “Saindo daqui até São Luís, você só via a roça de milho, feijão de todo lado… Agora num vê um capão de roça. O pessoal acha que comprar é melhor, porque vai plantar e a mão-de-obra é cara, o adubo é caro, semente é cara… E num tem mais camarada também; de primeira tinha pra você fazer um mutirãozinho de 80 a 100 pessoas pra limpar a roça. Agora, se eu fizer, num junta 20. A mocidade quer ir embora pra cidade pegar emprego, porque aqui não tem pra fazer.”
O aumento das florestas, segundo ela, ocorre junto a um processo de perda de conhecimento e práticas culturais associados à floresta. “Tal perda leva a uma desconexão da comunidade local com a floresta que pode levar a consequências negativas para a cobertura florestal, no futuro”. Como ficou constatado na fala de um morador de 49 anos sobre plantas trepadeiras: “Hoje raramente um moleque conhece um tipo de cipó. Se eu levar meu filhos no mato eles não vão saber dizer. A cultura das pessoas, dos caipiras, foi acabando… porque não se usa mais. Se você vai usar o cipó, você usa um arame.”
Só um pontinho na mapa? A vila está inserida na bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, uma bacia de suma importância não só para o local, mas que afeta milhões de pessoas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e no sul de Minas Gerais. Além disso, Alice lembra que as águas do rio são responsáveis não só pelo abastecimento nas residências, mas também para as indústrias. “Por isso que as ações de uso do solo e de ocupação do solo nessa área têm impacto numa escala muito maior”.
Chamar atenção para o desenvolvimento de ações de conservação da natureza e da biodiversidade é, no fim das contas, uma das missões da estudante de doutorado. “Você pode pensar ‘ah, é só um pontinho no mapa’, mas esse pontinho vai se somando a vários outros que têm condições socioeconômicas e ambientais similares, e isso tem consequência em uma escala maior. Ações num nível local, que visem melhorar a produção de água vão refletir, por exemplo, na água que chega na cidade de São Paulo”, conclui.
Tocando em frente O assoreamento, causado por essa série de fatores, poderia ser controlado caso houvesse um conjunto de ações necessárias alinhadas para o mesmo objetivo, como elucida a pesquisadora. “plantios em curva de nível, pecuária com gado semi-confinado e rotação de cultura, além de plantio de árvores nas pastagens são exemplos de ações que, combinadas, podem trazer grandes benefícios em termos de evitar a perda de solo”.
Alice faz questão de deixar claro que a ideia não é prescrever uma solução. “A nossa pesquisa pode ser direcionada pra contribuir pra esse processo de tomadas de decisão, mas a gente não vai falar ‘façam isso, façam aquilo’, que ainda é algo muito comum por parte da Academia. Eu quero apresentar os resultados de modo que possam ser usados pelos órgãos e pessoas competentes e também pela comunidade”.
Sem dúvidas, o conhecimento tradicional é indispensável nessa trajetória e existe uma preocupação por parte de Alice para uni-lo com o conhecimento científico. “As pessoas que estão inseridas naquele contexto e lidando diretamente têm muito a compartilhar, e ao combinar o empírico com outras formas de conhecimento, isso pode abrir o nosso horizonte de compreensão a respeito dessas dinâmicas que ocorrem”, comenta.
Apesar do cenário de degradação da maioria dos serviços ecossistêmicos mais relevantes àquela comunidade, existem iniciativas em nível local que se opõem a essa tendência. Alguns dos exemplos envolvem a Feirinha da Vila e a Rede SUAPA (Rede para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Paraíba do Sul). Esta última refere-se a um grupo formado por técnicos ligados ao governo estadual, a administração municipal e do terceiro setor, que se reúnem voluntariamente para pensar ações e projetos para o desenvolvimento rural sustentável do município.
“Todas essas iniciativas endereçam os serviços ecossistêmicos relevantes e apresentam projetos que ajudam a moldar um futuro promissor”, comenta Alice. Mesmo assim, ela pondera que tais ações ainda ocorrem numa escala pequena no território. “São promissoras sim, porém precisam de fortalecimento e ampliação, para que os impactos positivos transcendam o nível local”, conclui Alice.
Saiba mais Alice é bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Foi membro do projeto de pesquisa “SinteSIS: Gestão de Recursos Naturais em Sistemas Socioecológicos: Integrando Conservação Ambiental e Desenvolvimento Local”, coordenado pela professora Cristiana Simão Seixas e financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que encerrou as atividades em 2018.
O projeto fez parte do grupo interdisciplinar de pesquisa, ensino e extensão do Nepam, o CGCommons, que atua desde 2009 na área de gestão e conservação de recursos naturais de uso comum, auxiliando na mobilização de ações das comunidades que dependem de tais serviços. Para saber mais, acesse: http://cg-commons.wixsite.com/commons
*Alessandra Marimon é jornalista e aluna do programa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor/Unicamp)